O Paraguai pode encontrar uma maneira saudável de se relacionar com a cannabis
A maconha é usada para tratar o câncer, o Parkinson, o Alzheimer e a epilepsia. Suas sementes estão repletas de proteínas e ômegas. Serve para fazer papel e biocombustível, suas fibras são usadas para construção de casas e carros. Também é uma droga recreativa para 192 milhões de pessoas e nunca foi registrada uma morte por conta do seu consumo. O que aconteceria se o maior produtor da América do Sul legalizasse a maconha?
Henry Ford usou maconha e soja na carroceria de um protótipo de automóvel sustentável em 1942, “the soybean car [o carro de soja]”. Hoje, o cânhamo, como é chamada a planta da maconha usada para fins industriais, está presente em modelos como o Alfa Romeo Giulia ou o Peugeot 308 e em um carro esportivo “mais forte que o aço".
Um hectare de cânhamo produz a mesma quantidade de polpa que quatro hectares de árvores e demora só alguns meses para crescer. Produz três vezes mais fibra que o algodão, com menos água e sem usar pesticidas. Há garrafas feitas com base no óleo de cânhamo que são biodegradáveis em menos de 280 dias — as PET levam 420 anos. As sementes da planta contêm quase tanta proteína como as da soja e seis vezes mais ômega 3 que o atum fresco.
Todo esse potencial é encontrado numa planta cujo cultivo é proibido no Paraguai. Mas, em outras partes do mundo, a relação com a cannabis é diferente.
Em quase qualquer lugar da União Europeia, é possível ter acesso a óleos, cremes, xampus, géis e até comida para gatos com cannabis medicinal, ainda que o autocultivo e o uso recreativo não estejam regularizados.
O Uruguai foi o primeiro país do mundo a regulamentar seu uso em 2013. Desde então, com registro prévio, seus habitantes puderam comprar maconha, inclusive as suas flores, em farmácias autorizadas; também podem ter até seis plantas em casa ou fazer parte de um clube com cultivo coletivo. Além disso, existem empresas autorizadas a produzir com fins científicos e de uso medicinal.
O Canadá foi o segundo país do mundo a legalizar a maconha com fins recreativos. Na Bolsa de Valores, esse mercado está estimado em mais de um bilhão de euros e pode alcançar os quatro bilhões em 2024. Nos Estados Unidos — o país que iniciou a guerra contra as drogas nos anos 1970 — a maioria dos habitantes vive sob leis que regulam a maconha. Em 15 estados ela foi despenalizada totalmente e em 35 seu uso medicinal é permitido. A indústria da cannabis nos EUA projeta alcançar 19 bilhões de dólares em vendas em 2020. E 45 bilhões em 2025. O retorno em impostos dessa indústria ultrapassou 1,04 bilhões de dólares em 2018.
Desde 2015, a Jamaica permite o autocultivo o porte de 50 gramas e o uso em rituais religiosos rastafari. O Chile despenalizou o autocultivo e seu consumo privado em 2016. Na Argentina, o autocultivo foi legalizado em 2020 e já existe uma empresa estatal produzindo óleo de cannabis. Seu uso medicinal também foi regulamentado em Peru, Equador e Colômbia. Mas no Paraguai seu cultivo ainda é crime.
“Nós seguimos sendo criminalizadas”, diz Cynthia Farina, presidenta da Mamá Cultiva, uma organização de famílias afetadas por doenças que podem ser tratadas com cannabis. A organização conseguiu obrigar o Estado paraguaio a prover óleo medicinal de cannabis a quem precisa. Mas não conseguiu o objetivo principal: o direito de plantar em casa, como fazem com a menta, a lúcia-lima, a arruda ou a sálvia.
A maconha é usada nos sistemas de saúde dos Estados Unidos (1996), Canadá (1999), Israel (2001), Holanda (2003), Suíça (2011), República Tcheca (2013), Austrália (2016) e Alemanha (2017) e na maioria dos países da União Europeia para reduzir as convulsões da epilepsia, para fibromialgia, artrite, asma e glaucoma, para o acompanhamento da quimioterapia, para o autismo ou ansiedade. Combate outras doenças neurodegenerativas, como a esclerose múltipla, e inflamatórias crônicas, como a doença de Crohn. “Também tem propriedades antitumorais e antidepressivas, como foi demonstrado por pesquisas científicas da Espanha, Israel e EUA”, diz o médico paraguaio Arturo Vachetta.
“Eles obrigam as famílias a comprarem um produto importado e a um custo muito elevado”, diz Farina, cuja filha de nove anos toma há quatro óleos que quase eliminaram as convulsões de que sofria. “A lei é letra morta: não há registro de usuários, nem produção, nem distribuição”, denuncia.
Édgar Martínez Sacoman foi condenado a cinco anos de prisão por produzir óleo medicinal ao mesmo tempo em que o governo concedia a primeira autorização para importar óleo medicinal ao laboratório Lasca-Scavone. A empresa vendia o frasco a 1,8 milhões de guaranis, algo como 300 dólares. Sacoman começou a produzir seu próprio óleo e hoje vende um frasco de 50 ml, que dura duas semanas, por 624.750 mil guaranis. É quase um terço do salário mínimo em um país onde 7 entre cada 10 trabalhadores ganham esse salário — ou menos — por mês.
Além disso, só são importados óleos com canabidiol (CBD), um dos 113 canabinóides que compõem a planta e, portanto, sem tetrahidrocanabinol (THC), o componente psicoativo e primário, que serve como analgésico e neuroprotetor. “Juntos são muito mais efetivos. Por isso queremos fazer nós mesmas, o que garantirá que será barato, de boa qualidade e 100% orgânico”, diz Farina.
A redatora do primeiro projeto de lei de autocultivo do Paraguai é a advogada Lisette Hazeldine. Ela colocou as palavras no texto que apresentou ao senador Victor Ríos e que se converteu na lei 6007, ainda que durante sua tramitação os demais legisladores tenham cerceado as possibilidades do autocultivo.
Em 2020, um novo projeto procurava despenalizar a planta, mas foi vetado pelo Executivo e agora deve retornar à Câmera dos Deputados, com maioria do Partido Colorado [maior agremiação política do Paraguai, de orientação conservadora, que governa o país desde 1946 até hoje, com a exceção do período entre 2008 e 2013]. “A situação não está muito promissora, estão fazendo um forte lobby para negar a aprovação”, opina Hazeldine, que também é cofundadora do Observatório Paraguaio da Cannabis e professora e pesquisadora da Universidade de Pilar. “Fazem isso com desinformação, como ao criminalizar o THC, para conseguir nos encurralar, mas não tem sustentação jurídica nem científica”, assegura.
“A maior barreira que temos é a ignorância. Em um mundo ideal poderíamos nos converter no maior exportador da América de cannabis. Temos a melhor terra”, sustenta a professora.
“É como se proibissem os yuyos [ervas diversas tradicionais] de serem adicionadas ao tererê”, opina José Cardona, integrante da Câmara Paraguaia de Cannabis Industrial, constituída em 2019 por 80 empresas e algumas associações de agricultores. O cânhamo é a maconha, são a mesma planta: só que a indústria deu esse nome às espécies escolhidas e hibridizadas pelo seu baixo conteúdo de THC — que em sua maior parte está nas flores — para se afastar do estigma social.
Por iniciativa do Senado, um decreto presidencial de outubro de 2019 batizou o cânhamo industrial como “cannabis não psicoativa” e estabeleceu as normativas para sua produção, entre elas, a de que o conteúdo de THC seja menor que 0,5% — a maconha recreativa, por sua vez, costuma superar os 6% — e que o Ministério da Agricultura faça sua gestão. Em agosto de 2020, outro decreto lançou um programa nacional para a investigação, produção e comercialização do "cânhamo industrial (cannabis não-psicoativa)”, mas até agora não saiu do papel.
“O cânhamo segue sendo manejado de modo muito restritivo, com entraves fitossanitários e burocráticos”, diz Cardona, engenheiro agrónomo que há cinco anos viu no cânhamo uma nova oportunidade e quer produzir e exportar. “É um contrassenso que, em um país onde as condições de clima estão dadas e a planta está extremamente adaptada, não se possa reverter a ilegalidade”, argumenta.
Cardona e a Câmara da Cannabis denunciam que o governo “não fez licitação pública, nem concurso” e, por isso, “tudo ficou nas mãos de doze farmacêuticas, escolhidas a dedo”. O empresário destacou o paradoxo de que a planta esteja sendo apropriada pela mesma indústria farmacêutica que sempre a estigmatizou. “O discurso das farmacêuticas é que só elas podem fazer a cannabis medicinal, coisa que não é verdade, pois é muito simples de produzir”, afirma.
O governo anunciou que o cânhamo industrial daria trabalho a 25 mil pequenos agricultores paraguaios, fomentando o desenvolvimento do campo. No entanto, tudo ficou nas mãos da Healthy Granes, propriedade de Marcelo Demp, um empresário paraguaio que foi condenado em janeiro de 2020 junto com seu irmão, por falsificar documentos de outra das suas empresas, Latin Farmes, nas costas de seus sócios. É a única empresa autorizada até agora.
A Healthy Grains assegurou, em setembro de 2020, que era a primeira empresa paraguaia e da América Latina a exportar alimentos derivados do cânhamo industrial aos Estados Unidos. Disseram ter enviado 500 quilos de grãos descascados, 350 quilos de farinha sem gordura e 150 litros de óleo de cânhamo. “Todos deveriam ter um lugar ao sol no negócio da cannabis, não somente a Healthy Grains”, resume Cardona.
Diante de tal situação, a desobediência civil se estendeu para além de mães e pais que, desesperados pela dor de seus filhos, produziam em segredo em suas casas. Agora também empresários e associações médicas decidiram descumprir as leis de propósito e publicamente.
Uma experiência de desobediência civil é a do empresário Juan Carlos Cabezudo, pioneiro na exportação da chia no país que hoje é o maior exportador mundial. Em 2016, quis colocar suas redes e seu capital na cannabis, mas a Receita Federal proibiu durante três anos a primeira importação de sementes de cânhamo no país. Apodreceram na alfândega.
“Não fizeram reuniões com pequenos produtores, nem com empresários, nem com a academia, com a Universidade Nacional; não fizeram nada. Não existe um laboratório público. É um caminho sem saída”, afirma Cabezudo.
Desde então, ele tem promovido a regulação da cannabis de forma direta a alguns passos da capital. Em uma propriedade alugada, criou a Granja Madre e produz milhares de plantas de maconha para dar às famílias que necessitam do Mamá Cultiva e nas praças de Assunção. Como salvaguarda, ele se denunciou à Receita, que em três anos não o perseguiu.
Ele já organizou congressos sobre a cannabis com especialistas internacionais e pode falar sobre o assunto por 12 horas seguidas se necessário. No final de 2020, criou uma marca chamada Kokuesero, que doa o óleo canábico com todos os canabinóides para pessoas sem recursos e os vende com nota fiscal, num custo que é menos da metade do preço praticado pela farmácia Scavone.
Além da capital, San Pedro é um dos estados mais empobrecidos do Paraguai e que possui a maior concentração de pequenos agricultores. Assim como em Amabay, Canindeyú e Alto Paraná, também tem plantações ilegais de maconha que muitas vezes são o único sustento de milhares de famílias.
“Enquanto isso, o terrorismo de Estado recai sobre o produtor que não tem a mínima intenção de se dedicar a esse ofício, mas o faz porque não tem alternativa”, explica Fran Larrea, professor e deputado estadual de San Pedro. “Mas os traficantes não são presos, ficam protegidos”, diz.
“Precisamos de uma solução agrária integral e a cannabis pode fazer parte dela se não ficar só entre os empresários”, argumenta Larrea. “Existe uma forte suspeita de que com a legalização o preço cairia. E esse é um grande medo que as pessoas têm, porque não plantam pelos benefícios da planta ou por seu uso recreativo, e sim pelo preço”, acrescenta.
“Os empresários vão fixar um preço irrisório como com qualquer outra colheita abundante e o agricultor ficará só”, lamenta. Por isso, ao lado de Cabezudo, trabalha na expansão da marca Kokuesero com uma cooperativa de pequenos produtores de San Pedro chamada Copacan. Mas projeta que, para conseguir firmar a ideia, os agricultores locais precisarão de uma explicação profunda. “Não vamos conseguir sucesso com silêncio. Precisamos de uma cooperativa agrícola direcionada para a educação e conhecimento de todas as plantas”, diz.
Pacientes, mães e pais, empresários, agricultores e pesquisadores trabalham para que o Paraguai regule o cultivo e o uso da chamada erva maldita. Mas os governantes dão passos lentos demais na direção de um caminho que se mostra possível: ser o maior produtor legal da América do Sul, gerar ganhos públicos, melhorar a saúde e gerar emprego com um planta que no país quase cresce sozinha.
El brasiguayo es una serie de historias sobre el cannabis prohibido de Paraguay que llega a casi toda Sudamérica. Tiene el apoyo del Fondo para Investigaciones y Nuevas Narrativas sobre Drogas (FINND) de la Fundación Gabo